Thursday, October 15, 2009

tinha 9 anos, continua

Por alguns meses minha mãe deixava o choro surgir no meio das tarefas domésticas. Ela, enquanto lavava roupas ou cozinhava, chorava, reclamava e lamentava. Me lembro de uma vez em que, enfurecida pelo peso da responsabilidade, se queixou que meu pai nao havia feito seguro de vida. Como se uma pessoa com 44 anos de idade, saudavel feliz fosse se preocupar com isso.

Fiquei em Santa Rita até terminar a segunda série primária e voltei a Carmo para passar as férias de verão. O falecimento do meu pai não deixou que eu fizesse das minhas férias outra coisa alem do que ela deveria ter sido para uma criança da minha idade. Brincava e explorava a vida na companhia de primos. Ainda assim os acontecimentos de alguns meses atras se manifestavam de forma sutil e curiosa, como na vez em que encontrei um filhote de passarinho morto e tentei lhe dar um enterro digno com direito a caixão feito de alguns gravetos traçados e uma pequena procissão com a presença de duas das minhas primas. A brincandeira foi interrompida por uma furiosa tia Ita, que com voz rouca de raiva e sombracelhas tensas como se estivessem prontas a serem atiradas para cima, me condenava por estar brincando com coisa séria e por ter havido ignorado o verdadeiro enterro.

A casa da minha vó era grande; nao era divida ainda em uma loja e tres apartamentos como é nos dias de hoje. Haviam escadas com corrimão de marmore proprias para serem usadas como escorrega pelas crianças. Uma escada em especial me intrigava. Ela nao levava a lugar nenhum, parava onde o chao do segundo piso aparecia como teto rebaixado. Eu gostava de imaginar que alem dela existia algum misterio. A casa toda transmitia um ar misterioso para mim. Teto alto, móveis e objetos escuros e antigos, fotos de parentes já falecidos nas paredes e em pequenas molduras espalhadas pelos móveis, atraiam a rechaçavam a direção do meu olhar.

Rezava-se várias vezes ao dia. O som de vozes declamando o rosário e o constante cheiro de velas, mais as imagens de santas sofridas e quadros de Jesus com olhares vigilantes, lembravam a mim que naquela casa os mortos eram lembrados. Enquanto rezávamos as Ave Marias e Pai Nossos em voz alta, mantinhamos a cabeca e olhos ligeiramente apontados para cima como se esperăssemos que eles dessem algum sinal, pelo menos pelo lado espiritual. Isso me assustava um pouco, e a possibilidade de que alguem já falecido se expressasse visualmente devido aos constantes pedidos em preces me apavorava.

Havia bastante espaço em termos de quintais e pequenos jardins. O jardim mais bonito e bem cuidado ocupava o lado direito da frente da casa e mudou pouco nos dias de hoje. Ele é todo pavimentado com blocos de pedra; as plantas estão ou em vasos e jardineiras ou no chão em terra exposta rodeada por pedras. Flores como roseiras, azaléias, beijos e outras um pouco mais exoticas; anturios, filodendros e outras folhagens tropicais, que juntos com mesas e assentos de marmore e bancos maciços de concreto faziam, de forma despretensiosa mas harmonica, que esse jardim desse a sensação de que possuíamos um parquinho particular.

Dessa área descia-se por uma pequena escada para chegar na parte traseira onde o quintal se extendia para a direita e desviava para a esquerda atravessando os quintais de pelo menos uma duzia de casas e seguia até o limite urbano da cidade. Esse longo e estreito quintal era murado aos lados mas năo no final, onde ele se disperssava em pastos de pequenos sitios já no principio da zona rural. Todo esse enorme territorio nos era proibido a exploração devido ao mato fechado e a imensa quantidade de cobras.

A parte desse quintal logo atras da casa ainda recebia algum cuidado por ser área de uso. Um tanque no centro e duas pequenas estruturas construidas que serviam de dispensa ou eram usadas como moradia quando preciso requeriam o tráfego de pessoas. Arvores frutiferas de copas cheias deixavam o solo sempre úmido e cobertos de matéria orgãnica. As mangueiras varias vezes ao ano deixavam o chão sujo com uma quantidade indejada de mangas em estados diversos de putrificação. Agarradas nessas mangueiras uns tres tipos de orquideas e algumas bromélias, que eram e ainda são chamadas de pragas por aquelas bandas, surpreendiam com sua abundancia de lindas flores e pela indiferença com que elas eram recebidas.

Havia ainda um pequeno jardim no lado esquerdo e atrás da casa tambem com jeito de pracinha, isto é, pavimentado e bem cuidado. Ele dava entrada para um quarto espaçoso, alto, escuro e sem janelas. Nesse quarto haviam objetos guardados que vinham de varias geraçoes: Fotografias antigas em caixas de camisas masculinas e baús com roupas e fantasias de carnaval de outras epocas. O que mais me fascinava porem eram duas caixas de sapatos repletas de botões de roupas que minha vó colecionava. Já naquela epóca eles pareciam vir de roupas da moda de décadas passadas. Tudo que tinha nesse quarto e que me fazia imaginar que tinhamos um pequeno museu historico da familia não existe mais. Ninguem sabe de que maneira foram dispensados e para onde foram.

Um incidente com uma cobra contou com meu envolvimento direto e está ainda vivo na minha mente por seu caráter, digamos assim, um pouco bizarro. Ao lado do tanque no quintal posterior havia um tampão de cimento que cobria, fui saber depois que ele foi descoberto, uma caixa de gordura ocupando uma metade e pedras para construção na outra metade, que era rasa e parecia não ter razão de ser. Estava eu conversando com minhas primas quando decidi sentar na superficie desse tampão. Por motivos que desconheço eu resolvi me sentar justamente em cima de uma rachadura que abria uma pequena fenda no cimento. A ação de sentar foi instantaneamente seguida da de levantar e olhar para trás para o buraco e ver um pequena forma triangular se mexer e voltar para o escuro do interior do caixão de cimento. Acionei o alerta que tinha visto uma cobra.

Um primo da minha vó, Paulo, que naquela época habitava um quarto na parte direita desse quintal, de onde partiu sem nunca mais dar notícias depois que ganhou na loteria, foi chamado para resolver o problema. Ele era qualificado para esse trabalho, uma vez que tinha como suplemento de renda a captura de cobras que ele encontrava com uma certa frequencia, e a venda delas para a fabricação de soro anti-ofídico. Quando chegou para executar o serviço veio acompanhado de tres outros homens, que juntos teriam a força necessária para levantar o pesado tampão de cimento. Minha vó, vendo toda aquela mobilização, me ameaçou com uma surra no evento de que tudo fosse somente produto da minha imaginação. Me postei no topo da pequena escada de cimento que dava para o quintal de cima e dalí para a rua e esperei para a confirmação do nada e para a hora em que deveria escapulir. O tampão foi retirado e durante alguns segundos de silencio em que parecia que meu falso julgamento seria revelado, uma cobra vermelha, preta e branca apareceu deslizando sinuosamente entre as pedras. Ela foi imobilizada e rapidamente retirada pela destreza do experiente Paulo, que apertando a cobra pela parte logo abaixo da cabeça tratou logo de colocá-la dentro de um garrafão vazio de vinho. A cobra coral, depois de alguns momentos no garrafão e nauseada pelo pouco ar dentro, expeliu um pequeno sapo que ainda em sua forma pré-digerida boiava em um liquido esverdeado.

1 comment:

  1. Muito bom, bem escrito, cria interesse na seqüência, uma história real mas poderia ser ficção. Continue escrevendo que seu talento está posto e passou na prova. Serei seguidor!

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